Um símio Exótico e Divino
Segundo a teoria criacionista[1] qualquer criatura é obra de Deus.
Se aceitarmos a teoria, tal como, na sala capitular do convento de Nª Sra. da Conceição de Beja, as freiras clarissas aceitaram um símio, estaremos mais aptos a compreender tão estranho comportamento. Aliás, estas representações de animais e plantas têm um percurso singular, umas vezes paralelo, outras vezes distinto, conforme os diferentes períodos vividos pela História de Arte europeia. Não é vulgar na sala mais regral de um convento a existência de figurações profanas ou irreverentes, conquanto sejamos nós, na actualidade, a avaliá-las. Arrisquemos analisar a situação.
A conjuntura é, entre outros eventos, a do período áureo dos empreendimentos marítimos portugueses, na transição dos séculos XV para XVI, da descoberta de novos mundos, da pujança do humanismo e da instituição da inquisição, da expulsão dos judeus e do começo da crise da Igreja. O convento da Conceição é o segundo feminino da Ordem de Santa Clara, sob jurisdição franciscana, a ser construído na cidade, mas no interior das muralhas, às portas romanas de Mértola, sendo seus fundadores, em 1459, os primeiros duques de Beja, Infantes D. Fernando e D. Brites, filhos, respectivamente, do rei D. Duarte e do seu irmão, D. João. O infante D. Henrique, o Navegador, deixa por sua morte, em 1460, a seu sobrinho, D. Fernando (1433-1470), todos os seus bens materiais e espirituais, transformando o ducado de Beja numa das mais ricas e influentes casas principescas de Portugal, cujo reflexo se faz sentir no exterior. O 1º duque de Beja é, agora, como mestre da Ordem de Cristo e da de Avis, o 2º duque de Viseu, senhor de Serpa, Moura e Covilhã, Governador de Ceuta, etc., etc., e Condestável do reino, personagem incontornável da política ultramarina portuguesa. Os seus filhos, D. João (1448-1472), D. Diogo (1450-1484) e D. Manuel (1469-1521), prosseguem perspicazmente, julgamos, a obra paterna. Embora seja mais conhecida a obra do rei Venturoso, quanto aos resultados positivos das descobertas marítimas, o ducado de seu irmão D. Diogo, durante doze anos, nada teve de apagado, mas, como sabemos, apagaram-no[2] e, como era costume, a sua memória foi erradicada.
Ora, o símio pintado a fresco, no interior da sala capitular da Conceição, foi descoberto quando, em 1955, se restaurava um dos painéis azulejares de aresta sevilhana, datáveis, segundo Baiôa Monteiro (2001: 90 e 190)[3] do segundo terço do século XVI. A fotografia que o mostra, tomada por Abel Viana (1896-1964), identifica perfeitamente o local exacto em que se encontrava, logo à direita da capela de Cristo na Cruz. Abel Viana descreve o achado fortuito: “[…] é um pequenino macaco, desses que ainda no século presente [séc. XX] era frequente trazerem do Brasil os portugueses de regresso à Pátria. Talvez um saguí, representado em tamanho natural, pois na pintura o corpito não tem mais que 185 milímetros de comprido. Está pintado de pardo, na cor natural do animalzinho. O todo, desde a ponta do focinho à extremidade da cauda, mede 463 milímetros. A cabeça ficou quase destruída ao arrancarem os azulejos (fig.68).”[4] Abel Viana informa-nos ainda que desenhou, fotografou e pediu ao então contínuo do museu, o nosso amigo, recentemente falecido, Eduardo Correia Arsénio, que “tentasse a ligação dos fragmentos num pequeno tabuleiro de madeira, o que ele soube fazer.” O Museu Regional de Beja, como se sabe, a funcionar no próprio edifício, desde 1927, guarda no seu acervo os restos desta pintura, porém, actualmente, a fotografia de Abel Viana, como documento, é melhor que o original. A datação da pintura do símio pode remeter-se para o final do século XV ou início do XVI.
É provável que as determinações do Concílio de Trento (1545-1563), ou as razões que levaram à sua realização, tenham exercido alguma influência na mudança do ambiente decorativo da sala capitular. A ser verdade, as pinturas murais de carácter exótico, com representação de símios, vegetação exuberante, e sabe-se lá que mais, relacionadas com a empresa marítima portuguesa, estreitamente ligada à protecção dos duques de Beja e fundadores do convento, teriam sido cobertas pela azulejaria sevilhana nos anos de 1530 ou 1540, como deduziu Baiôa Monteiro, ou, ainda, um pouco mais tarde, se atendermos às decisões da Contra-Reforma. Para Abel Viana (op.cit. p.145), a cobertura azulejar, seria datável de meados do século XVI. Na realidade, este símio caseiro, domesticado, de trela avermelhada afivelada na delgada cintura, parece ter sido, se é que não houve mais como ele, além de outros animais exóticos, um símbolo do homem no seu estado primitivo, portanto uma criação de Deus, aceitável, divertida e, até, sagaz. É natural que as freiras, além de se divertirem com as suas diabruras e imitações (cá estão as palavras que o condenam), tivessem protegido e adoptado este animal e o considerassem uma criatura de Deus, daí a sua representação, sem qualquer outra subtileza de natureza condenável, na sala mais regral do convento [observação que Abel Viana também faz, acrescentando o elevado apreço que para a maioria das pessoas tinha tal curiosidade exótica e o facto de puderem ser, quando em número suficiente, reexportados para a Europa].
Que é estranho ver um símio retratado num lugar sagrado do interior de um convento, é. Que foi consentido, foi. Que a sua ocultação posterior foi de natureza iconoclasta, é provável. Além dos revestimentos azulejares estarem na moda, é verosímil que os seus motivos inócuos, fitomorfos e geométricos, tivessem consumado, de forma oportuna, neste contexto, algumas das regras impostas pela igreja católica.
E, agora, vem a parte menos sisuda e mais criativa: toda gente sabe o que aconteceu ao animal de estimação…e à sua dona. Ambos morreram, provavelmente ele antes dela. Depois, colocaram-lhes por cima, dela, uma campa lisa, em mármore, e, dele, azulejos, dos mais lindos e modernos que então existiam. Apesar do hipotético reencontro tardio, viveram felizes para sempre.
LEONEL BORRELA
[1] Há várias concepções a propósito desta teoria criacionista, conforme é encarada por protestantes (e entre estes também há diferentes conceitos), católicos, cristãos ortodoxos e, também, por outras confissões religiosas. Fundamentalmente todas reconhecem a existência de um Deus ou, até, de várias entidades superiores que tudo criaram, negando maioritariamente as propostas científicas que explicam a formação e evolução do universo e da vida sem intervenção divina.
[2] D. Diogo foi acusado de conspirar contra o rei D. João II, seu cunhado, sendo por este assassinado (acusação descabida, para alguns historiadores que prezam a “justiça” real), em 1484. O próprio assassinato é a prova da relevante actividade em que andava envolvido D. Diogo, mercê dos seus títulos e poder.
[3] MONTEIRO, Florival Baiôa – A azulejaria do convento de Nossa Senhora d Conceição de Beja. Beja: Região de Turismo Planície Dourada, 2001. pp.90 e 190.
[4] VIANA, Abel – “Macaquinho do século XVI”. In Arquivo de Beja , Vol.XIII, 1956. pp. 138, 144 e 145. Cf. também fotografia nº121, entre pp. 136 e 137.
visite http://foradebeja.blogspot.com/ e http://acultura.no.sapo.pt/page7.html.
Segundo a teoria criacionista[1] qualquer criatura é obra de Deus.
Se aceitarmos a teoria, tal como, na sala capitular do convento de Nª Sra. da Conceição de Beja, as freiras clarissas aceitaram um símio, estaremos mais aptos a compreender tão estranho comportamento. Aliás, estas representações de animais e plantas têm um percurso singular, umas vezes paralelo, outras vezes distinto, conforme os diferentes períodos vividos pela História de Arte europeia. Não é vulgar na sala mais regral de um convento a existência de figurações profanas ou irreverentes, conquanto sejamos nós, na actualidade, a avaliá-las. Arrisquemos analisar a situação.
A conjuntura é, entre outros eventos, a do período áureo dos empreendimentos marítimos portugueses, na transição dos séculos XV para XVI, da descoberta de novos mundos, da pujança do humanismo e da instituição da inquisição, da expulsão dos judeus e do começo da crise da Igreja. O convento da Conceição é o segundo feminino da Ordem de Santa Clara, sob jurisdição franciscana, a ser construído na cidade, mas no interior das muralhas, às portas romanas de Mértola, sendo seus fundadores, em 1459, os primeiros duques de Beja, Infantes D. Fernando e D. Brites, filhos, respectivamente, do rei D. Duarte e do seu irmão, D. João. O infante D. Henrique, o Navegador, deixa por sua morte, em 1460, a seu sobrinho, D. Fernando (1433-1470), todos os seus bens materiais e espirituais, transformando o ducado de Beja numa das mais ricas e influentes casas principescas de Portugal, cujo reflexo se faz sentir no exterior. O 1º duque de Beja é, agora, como mestre da Ordem de Cristo e da de Avis, o 2º duque de Viseu, senhor de Serpa, Moura e Covilhã, Governador de Ceuta, etc., etc., e Condestável do reino, personagem incontornável da política ultramarina portuguesa. Os seus filhos, D. João (1448-1472), D. Diogo (1450-1484) e D. Manuel (1469-1521), prosseguem perspicazmente, julgamos, a obra paterna. Embora seja mais conhecida a obra do rei Venturoso, quanto aos resultados positivos das descobertas marítimas, o ducado de seu irmão D. Diogo, durante doze anos, nada teve de apagado, mas, como sabemos, apagaram-no[2] e, como era costume, a sua memória foi erradicada.
Ora, o símio pintado a fresco, no interior da sala capitular da Conceição, foi descoberto quando, em 1955, se restaurava um dos painéis azulejares de aresta sevilhana, datáveis, segundo Baiôa Monteiro (2001: 90 e 190)[3] do segundo terço do século XVI. A fotografia que o mostra, tomada por Abel Viana (1896-1964), identifica perfeitamente o local exacto em que se encontrava, logo à direita da capela de Cristo na Cruz. Abel Viana descreve o achado fortuito: “[…] é um pequenino macaco, desses que ainda no século presente [séc. XX] era frequente trazerem do Brasil os portugueses de regresso à Pátria. Talvez um saguí, representado em tamanho natural, pois na pintura o corpito não tem mais que 185 milímetros de comprido. Está pintado de pardo, na cor natural do animalzinho. O todo, desde a ponta do focinho à extremidade da cauda, mede 463 milímetros. A cabeça ficou quase destruída ao arrancarem os azulejos (fig.68).”[4] Abel Viana informa-nos ainda que desenhou, fotografou e pediu ao então contínuo do museu, o nosso amigo, recentemente falecido, Eduardo Correia Arsénio, que “tentasse a ligação dos fragmentos num pequeno tabuleiro de madeira, o que ele soube fazer.” O Museu Regional de Beja, como se sabe, a funcionar no próprio edifício, desde 1927, guarda no seu acervo os restos desta pintura, porém, actualmente, a fotografia de Abel Viana, como documento, é melhor que o original. A datação da pintura do símio pode remeter-se para o final do século XV ou início do XVI.
É provável que as determinações do Concílio de Trento (1545-1563), ou as razões que levaram à sua realização, tenham exercido alguma influência na mudança do ambiente decorativo da sala capitular. A ser verdade, as pinturas murais de carácter exótico, com representação de símios, vegetação exuberante, e sabe-se lá que mais, relacionadas com a empresa marítima portuguesa, estreitamente ligada à protecção dos duques de Beja e fundadores do convento, teriam sido cobertas pela azulejaria sevilhana nos anos de 1530 ou 1540, como deduziu Baiôa Monteiro, ou, ainda, um pouco mais tarde, se atendermos às decisões da Contra-Reforma. Para Abel Viana (op.cit. p.145), a cobertura azulejar, seria datável de meados do século XVI. Na realidade, este símio caseiro, domesticado, de trela avermelhada afivelada na delgada cintura, parece ter sido, se é que não houve mais como ele, além de outros animais exóticos, um símbolo do homem no seu estado primitivo, portanto uma criação de Deus, aceitável, divertida e, até, sagaz. É natural que as freiras, além de se divertirem com as suas diabruras e imitações (cá estão as palavras que o condenam), tivessem protegido e adoptado este animal e o considerassem uma criatura de Deus, daí a sua representação, sem qualquer outra subtileza de natureza condenável, na sala mais regral do convento [observação que Abel Viana também faz, acrescentando o elevado apreço que para a maioria das pessoas tinha tal curiosidade exótica e o facto de puderem ser, quando em número suficiente, reexportados para a Europa].
Que é estranho ver um símio retratado num lugar sagrado do interior de um convento, é. Que foi consentido, foi. Que a sua ocultação posterior foi de natureza iconoclasta, é provável. Além dos revestimentos azulejares estarem na moda, é verosímil que os seus motivos inócuos, fitomorfos e geométricos, tivessem consumado, de forma oportuna, neste contexto, algumas das regras impostas pela igreja católica.
E, agora, vem a parte menos sisuda e mais criativa: toda gente sabe o que aconteceu ao animal de estimação…e à sua dona. Ambos morreram, provavelmente ele antes dela. Depois, colocaram-lhes por cima, dela, uma campa lisa, em mármore, e, dele, azulejos, dos mais lindos e modernos que então existiam. Apesar do hipotético reencontro tardio, viveram felizes para sempre.
LEONEL BORRELA
[1] Há várias concepções a propósito desta teoria criacionista, conforme é encarada por protestantes (e entre estes também há diferentes conceitos), católicos, cristãos ortodoxos e, também, por outras confissões religiosas. Fundamentalmente todas reconhecem a existência de um Deus ou, até, de várias entidades superiores que tudo criaram, negando maioritariamente as propostas científicas que explicam a formação e evolução do universo e da vida sem intervenção divina.
[2] D. Diogo foi acusado de conspirar contra o rei D. João II, seu cunhado, sendo por este assassinado (acusação descabida, para alguns historiadores que prezam a “justiça” real), em 1484. O próprio assassinato é a prova da relevante actividade em que andava envolvido D. Diogo, mercê dos seus títulos e poder.
[3] MONTEIRO, Florival Baiôa – A azulejaria do convento de Nossa Senhora d Conceição de Beja. Beja: Região de Turismo Planície Dourada, 2001. pp.90 e 190.
[4] VIANA, Abel – “Macaquinho do século XVI”. In Arquivo de Beja , Vol.XIII, 1956. pp. 138, 144 e 145. Cf. também fotografia nº121, entre pp. 136 e 137.
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