O Alentejo e o Algarve foram, nos primeiros tempos da monarquia portuguesa, terra de Missão. Ainda hoje há quem afirme, não sem alguma razão, que essa Missão não acabou, havendo sim que humanizar e moralizar os seus processos. Onde não havia capelas, espaços próprios destinados ao ofício divino, havia o altar portátil que permitia, concedida a necessária autorização episcopal ou papal, a comunhão eucarística em qualquer lugar, no campo, no mar e nos territórios de além mar, em África, Ásia e América. Os enfermos acamados também usufruíam, nas suas casas, das graças veículadas pelo altar portátil. Desejamos, se os dados fornecidos nesta primeira análise do altar portátil de Beja o permitirem, levar tão longe no tempo quanto possível a sua feitura. Talvez o final do século XV ou o início do XVI constituam um parâmetro cronológico aceitável, mas devemos desde já alertar que, pelo menos estilisticamente, a caixa de prata é bem posterior ao altar portátil, ficando por saber se teria sido feita para proteger o que já se considerava de grande estima, não só pela função que tinha - e, provavelmente, por também ter pertencido a alguém muito especial – ou se teria sido reaproveitada para tal fim, hipótese que nos parece mais correcta. É certo que a análise material, laboratorial, de alguns objectos fornece dados cronológicos e provas de autenticidade (ou não) indesmentíveis, mas quase nunca é suficiente quando se trata de distinguir, por exemplo, a maior antiguidade e o jogo de influências estilísticas (e também politicas, sociais, económicas, religiosas, em suma: culturais) entre peças de certa proximidade histórica. Não nos admiraria absolutamente nada que um altar portátil desta natureza tivesse acompanhado, no período áureo dos descobrimentos marítimos portugueses, alguma figura importante da cidade de Beja, ou, então, que tivesse pertencido aos duques de Beja ou ao próprio convento. Mas, a pedra negra…
No Museu de Marinha, em Lisboa, não se encontra exposto um altar portátil que se afirma ter pertencido ou ter sido levado por Vasco da Gama na sua nau S. Gabriel? Sem conjecturas não se encontram soluções.
A caixa de prata
A caixa de madeira tem duas meias portas correndo em guilhotina e é revestida de folhas de prata e aplicação ornamental, também de prata, nas esquinas menores e arestas, conforme se mostra no esboço desenhado. O fundo, totalmente revestido a couro, possui duas réguas, posicionadas paralelamente no sentido da largura menor, a servirem de pés. A decoração estilizada de pendor naturalista, fitomorfa e simbólica, alude a S. João Evangelista - em cada um dos centros das faces menores, uma águia coroada e afrontada, com a cabeça de lado, suporta no bico um tinteiro; enquanto nas duas meias portas duas águias semelhantes às anteriores alternam a posição com duas palmetas. Na justaposição das meias portas forma-se o desenho, também cinzelado, de uma Custódia, ostentando: na base, um serafim; no cimo da haste, antes do templete, outra águia “evangelista”; e o templete de duas colunas e aletas adjacentes, cupulado e rematado por enorme cruz, expõe o Corpo de Deus, a Hóstia, assente numa meia-lua. Esta iconografia tem paralelo noutras representações dos estilos maneirista e do início do barroco, em Beja, nomeadamente no altar de S. João Evangelista no claustro do convento da Conceição. Por outro lado, as cintas recortadas por meios-círculos, aplicadas na maioria das arestas da caixa, servindo-lhe de moldura, foram decoradas com traços curtos de cinzel e pequenas cavidades obtidas por punção circular, um pouco à semelhança da solução fitomorfa utilizada no altar portátil do mosteiro do Lorvão, datado de 1514[3]. Não confundimos uma peça com a outra, nem a função é a mesma, contudo, as influências da técnica e do estilo aparentemente perduram.
A caixa “de toalhas” do Museu Regional de Beja não tem qualquer marca de ourives. Revela um trabalho estilizado, planimétrico, sem as aplicações repuxadas e volumétricas tão em voga na ourivesaria barroca. O delineado das águias e da custódia, remete o trabalho, em termos estilísticos e cronológicos, para o início do barroco, século XVII, enquanto a decoração fitomorfa da folhagem recortada das arestas, como vimos, obedece a um programa e tempo anteriores. Desconhecemos se a caixa pertencia ao convento da Conceição de Beja, mas tal afinidade não seria de todo incoerente, dada a profusão da simbologia do Evangelista mais querido das religiosas. A capela de 1601, no claustro, dedicada a S. João Evangelista, marca provavelmente o acentuar da rivalidade existente entre as religiosas “Baptistas” e “Evangelistas”, daí a profusão de águias e cordeiros[4].
As dimensões exteriores da caixa de prata são: 37,1x27,7x9,4cm; o interior, forrado a cetim (?) vermelho, tem 35x25,5x6cm e as meias portas têm cerca de 25,7x18,1cm cada. Data provável: início do século XVII.
[1] Com a referência actual de inventário OUR 99, fez parte do rol de objectos do Museu Regional inventariados para efeitos de seguro, em 1949, com o Nº31 e a seguinte descrição: “Uma caixa de madeira forrada de prata cinzelada, tendo dentro uma almofada de seda e ouro -500$00”. A mesma caixa tem ainda, colocadas no fundo externo, duas tarjetas: uma azul com a palavra Sé manuscrita e o Nº 99 e outra, vermelha, com o Nº58. Uma chapa circular de alumínio com a designação de Museu Regional de Beja ostenta também outro número, o 63. Estes dados são importantes porque podem vir a contribuir para um melhor conhecimento da história deste espécime.
[2] Como não tivemos oportunidade, ao longo dos anos, de consultar especialistas nestes materiais, é natural que a nossa pouca experiência possa vir a saldar-se num ou noutro erro de identificação ou classificação. Todavia, essa contrariedade, não obsta a que divulguemos ao mundo da história de arte e às comunidades científica e teológica, uma peça da liturgia cristã que reputamos de bastante rara.
[3] GONÇALVES, A. Nogueira – “O tesouro de D. Catarina de Eça”. In mundo da arte. Coimbra: Epartur, 1982. Nº 12, pp. 3-10; Cf. do mesmo autor – “Estudos de Ourivesaria”.Porto: Paisagem Editora, 1984. pp. 117-119 e 121-124 e, ainda, as pp. 46 e 47 do “Inventário de ourivesaria portuguesa dos sécs. XVI e XVII” do Museu N. Machado de Castro, 1992. Este altar portátil, com sua pedra de ara de pórfiro verde-escuro mosqueado, pertence ao acervo do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra
[4] O Museu Regional de Beja possui uma outra caixa, também de madeira, mas mais pequena, revestida a prata repuxada, dedicada a S. João Baptista e Sta. Custódia, mandada fazer, no século XVIII, pela madre Soror Catarina de São Brás. Esta religiosa parece não ter pertencido ao convento da Conceição. Cf. SARAMAGO, Alfredo – “Fé e Grandeza a boa vida de uma casa monástica – para uma história do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005. pp.137-140.
[2] Como não tivemos oportunidade, ao longo dos anos, de consultar especialistas nestes materiais, é natural que a nossa pouca experiência possa vir a saldar-se num ou noutro erro de identificação ou classificação. Todavia, essa contrariedade, não obsta a que divulguemos ao mundo da história de arte e às comunidades científica e teológica, uma peça da liturgia cristã que reputamos de bastante rara.
[3] GONÇALVES, A. Nogueira – “O tesouro de D. Catarina de Eça”. In mundo da arte. Coimbra: Epartur, 1982. Nº 12, pp. 3-10; Cf. do mesmo autor – “Estudos de Ourivesaria”.Porto: Paisagem Editora, 1984. pp. 117-119 e 121-124 e, ainda, as pp. 46 e 47 do “Inventário de ourivesaria portuguesa dos sécs. XVI e XVII” do Museu N. Machado de Castro, 1992. Este altar portátil, com sua pedra de ara de pórfiro verde-escuro mosqueado, pertence ao acervo do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra
[4] O Museu Regional de Beja possui uma outra caixa, também de madeira, mas mais pequena, revestida a prata repuxada, dedicada a S. João Baptista e Sta. Custódia, mandada fazer, no século XVIII, pela madre Soror Catarina de São Brás. Esta religiosa parece não ter pertencido ao convento da Conceição. Cf. SARAMAGO, Alfredo – “Fé e Grandeza a boa vida de uma casa monástica – para uma história do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005. pp.137-140.
Cf. BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Oaltar portátil do Museu Regional de Beja - I", in Diário do Alentejo de 12 de Janeiro de 2007.
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