terça-feira, 9 de julho de 2013

Pinturas do interior do moinho da Apariça, S. Matias, Beja.

Desde o século XIX, pelo menos, houve quem representasse, em desenho e como se fosse banda desenhada, nos locais onde trabalhava, o percurso da sua vida, os acontecimentos a que assistiu, etc. Não é raro ver, no interior de moinhos de vento, essas longas e enredadas locubrações artístico-descritivas, como testemunho de uma sui generis experiência de vida. A reprodução de uma das fotos que seleccionei pertence a um conjunto de diapositivos que há mais de vinte anos fiz num moinho, já arruinado, próximo de Beja, o da herdade da Apariça, o maior moinho de vento do concelho. Parecem ser figuras da transição dos séculos XIX para XX. Há militares, grupos de pessoas da aristocracia, gente simples, grandes navios com mastros enormes, touros, animais do campo, datas que poderão ser coevas da obra - enfim, um tratado de vida, provavelmente desenhado e pintado, quase tudo a negro, pelo primeiro moleiro que lá trabalhou e que teria sido emigrante. 
Neste momento (2013) desconheço o estado de conservação destas pinturas, mas julgo que davam um bom estudo na área da sociologia e antroplogia, portanto seria óptimo que algum estudioso das ci~encias sociaisse abeirasse da obra antes que ela desapareça. 


Leonel Borrela 

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O misterioso fecho de abóbada do “Hospital Velho”


ICONOGRAFIA PACENSE

O misterioso fecho de abóbada do “Hospital Velho”


            No período medieval cristão a arte atravessou diferentes expressões plásticas e foi utilizada de modo diverso, consoante a finalidade. Num tempo em que muito poucos sabiam ler, a linguagem da arte, especialmente da escultura e da pintura, era compreendida por todos. […]Porque somos herdeiros da mentalidade científica que nos últimos trezentos anos descurou paulatinamente o significado da simbólica cristã inerente às obras dos períodos românico e gótico, não viria mal ao mundo se continuássemos a ignorar, por uma questão de comodidade ou de total desinteresse, o misterioso fecho de abóbada da antiga enfermaria do Hospital Grande de Nossa Senhora da Piedade, fundado por D. Manuel, ainda enquanto duque de Beja, no ano de 1490, cronologia que, segundo a tradição e alguns pormenores construtivos aparentemente mais antigos, pode recuar a 1469, ao primeiro ducado de seu pai, o infante D. Fernando.
            […] O Homem debate-se desde a sua génese entre o bem e o mal, criando ao longo da sua evolução meios que lhe facultam bem-estar e segurança, mesmo em situações de extrema gravidade. Num tempo em que as doenças não se curavam como hoje, nem sequer as mais simples, e em que os casos psíquicos eram rotulados de possessões demoníacas, a cura maioritariamente aceite e praticada com fé, envolvia a purificação física, mediante água benta, e espiritual, invocando pelas orações a intervenção divina. Cremos que esta leitura é fundamental para desvendar o significado do fecho de abóbada figurativo, situado no 4º tramo da nave adossada à muralha na enfermaria gótica do “Hospital Velho”, designação por que é mais conhecido no aro de Beja. […] Ora, o fecho de mármore acinzentado, de Trigaches/São Brissos, material de que são feitas quase todas as obras de cantaria da cidade, com um diâmetro máximo de 30cm, exibe em baixo-relevo duas figuras frontais com seus atributos. Do lado esquerdo, pequena e mais avançada, vê-se uma criança praticamente nua, com a cabeça algo transfigurada nos traços essenciais, pernas pequenas, movimentadas (estrebuchando? e também com um certo ar de feto ou de recém-nascida), acorrentada pelo pescoço e presa a uma “estaca que, um homem barbado, à direita, bem maior e mais recuado, segura com firmeza, ostentando na mão direita, atrás da cabeça da criança, o que parece ser o cabo de uma arma branca, cuja lâmina quase não se vê. Um gancho de ferro, colocado posteriormente no centro, afectando a leitura da dita lâmina proporcionaria uma melhor visibilidade do fecho e iluminação deste tramo da enfermaria. Alguns dos outros fechos do hospital têm decoração geométrica, vegetalista e heráldica, mas também os há, sacralizando as diferentes áreas do edifício, com o simbolismo da cruz, seja crucifixo com pedestal ou a simples cruz da ordem de Cristo, além de um vaso com a dupla simbologia de uma árvore cujos ramos e folhas caem como se fossem, um chorão, uma palmeira ou a água em repuxo da fonte, portanto utilizado como fonte da vida e árvore da vida, motivos recorrentes noutros monumentos de Beja. Para finalizar este rol de fechos, sem os esgotar, pois merecem melhor inventário, destacamos mais um com cinco pombas, no género do da abobada estrelada, oitavada, da sala regral da entrada do antigo convento de São Francisco (actual pousada) e um outro presumivelmente com a imagem da lua cheia, como símbolo da noite, do silêncio e do recato que a instituição hospitalar exigia. Ainda tentámos procurar, sem sucesso, noutros edifícios portugueses e até estrangeiros, um fecho figurativo semelhante ao de Beja, pois não acreditamos que seja único, embora seja bastante invulgar.        
            Já vimos a representação do mistério, portanto, já só falta conhecer o que julgamos ser o seu significado. Quando colocamos um crucifixo na nossa casa, estamos a repetir, porque temos fé em Deus, um gesto ancestral ligado à protecção do lar, da família, ao afastamento do mal, da doença; se um crucifixo não é suficiente, ainda nos valemos de um elenco de santos para as ocasiões mais propícias. Evocamo-los para nosso auxílio e se os representarmos, parecem mais intensos e eficazes, o benefício melhora. É esta a diferença substancial entre o fecho do “milagre de São Bartolomeu”, assim o qualificamos, e todos os outros. O santo, apóstolo de Cristo, aparece-nos no acto de aprisionar o demónio, causa de todos os males. A figuração da criança estará relacionada com a roupagem de inocência de que se reveste o mal para nos enganar, manigância que não resulta com São Bartolomeu, exorcista muito venerado na região de Lamego, onde não conhecemos uma representação igual. Uma vez por ano, no dia 24 de Agosto, o santo solta o diabo por uma hora, não só para descarregar tensões como para recordar aos fiéis tresmalhados os cuidados que devem ter. O santo teria viajado até à Índia, mas foi na Arménia que viu o seu fim, depois de esfolado vivo (daqui a arma branca como símbolo do seu martírio) e decapitado, próximo do mar Cáspio, no século I. Antes expulsara o diabo do corpo de uma filha do rei Polímio, acorrentando de seguida o demónio.
            A crença de exorcista e o seu dia de celebração, quando “o diabo anda á solta”, leva milhares de pessoas a São Bartolomeu do Mar, em Esposende, com o intuito de evitar a gaguez, epilepsia, mau olhado e outras maleitas das crianças. Camilo Castelo Branco, nas “Noites de Lamego” (1908, 165), refere as “dezenas de criaturas obsessas”, principalmente mulheres possuídas pelo diabo, cujos familiares procuravam na aldeia de Caves, a cura para os seus males, com a intervenção de uma grande imagem de pedra do santo. Voltando ao fecho da antiga enfermaria de Beja, meditamos no modo como a arte tinha o poder de interceder na cura das pessoas e como ainda hoje sentimos a importância desse tempo a dizer-nos que a arte não é só obra estética, nem tão pouco tem que ser bela, nem agradável…

Leonel Borrela
In Diário do Alentejo de 17 fev 2012
    

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um símio exótico e divino



Um símio Exótico e Divino
Segundo a teoria criacionista[1] qualquer criatura é obra de Deus.
Se aceitarmos a teoria, tal como, na sala capitular do convento de Nª Sra. da Conceição de Beja, as freiras clarissas aceitaram um símio, estaremos mais aptos a compreender tão estranho comportamento. Aliás, estas representações de animais e plantas têm um percurso singular, umas vezes paralelo, outras vezes distinto, conforme os diferentes períodos vividos pela História de Arte europeia. Não é vulgar na sala mais regral de um convento a existência de figurações profanas ou irreverentes, conquanto sejamos nós, na actualidade, a avaliá-las. Arrisquemos analisar a situação.
A conjuntura é, entre outros eventos, a do período áureo dos empreendimentos marítimos portugueses, na transição dos séculos XV para XVI, da descoberta de novos mundos, da pujança do humanismo e da instituição da inquisição, da expulsão dos judeus e do começo da crise da Igreja. O convento da Conceição é o segundo feminino da Ordem de Santa Clara, sob jurisdição franciscana, a ser construído na cidade, mas no interior das muralhas, às portas romanas de Mértola, sendo seus fundadores, em 1459, os primeiros duques de Beja, Infantes D. Fernando e D. Brites, filhos, respectivamente, do rei D. Duarte e do seu irmão, D. João. O infante D. Henrique, o Navegador, deixa por sua morte, em 1460, a seu sobrinho, D. Fernando (1433-1470), todos os seus bens materiais e espirituais, transformando o ducado de Beja numa das mais ricas e influentes casas principescas de Portugal, cujo reflexo se faz sentir no exterior. O 1º duque de Beja é, agora, como mestre da Ordem de Cristo e da de Avis, o 2º duque de Viseu, senhor de Serpa, Moura e Covilhã, Governador de Ceuta, etc., etc., e Condestável do reino, personagem incontornável da política ultramarina portuguesa. Os seus filhos, D. João (1448-1472), D. Diogo (1450-1484) e D. Manuel (1469-1521), prosseguem perspicazmente, julgamos, a obra paterna. Embora seja mais conhecida a obra do rei Venturoso, quanto aos resultados positivos das descobertas marítimas, o ducado de seu irmão D. Diogo, durante doze anos, nada teve de apagado, mas, como sabemos, apagaram-no[2] e, como era costume, a sua memória foi erradicada.
Ora, o símio pintado a fresco, no interior da sala capitular da Conceição, foi descoberto quando, em 1955, se restaurava um dos painéis azulejares de aresta sevilhana, datáveis, segundo Baiôa Monteiro (2001: 90 e 190)[3] do segundo terço do século XVI. A fotografia que o mostra, tomada por Abel Viana (1896-1964), identifica perfeitamente o local exacto em que se encontrava, logo à direita da capela de Cristo na Cruz. Abel Viana descreve o achado fortuito: “[…] é um pequenino macaco, desses que ainda no século presente [séc. XX] era frequente trazerem do Brasil os portugueses de regresso à Pátria. Talvez um saguí, representado em tamanho natural, pois na pintura o corpito não tem mais que 185 milímetros de comprido. Está pintado de pardo, na cor natural do animalzinho. O todo, desde a ponta do focinho à extremidade da cauda, mede 463 milímetros. A cabeça ficou quase destruída ao arrancarem os azulejos (fig.68).”[4] Abel Viana informa-nos ainda que desenhou, fotografou e pediu ao então contínuo do museu, o nosso amigo, recentemente falecido, Eduardo Correia Arsénio, que “tentasse a ligação dos fragmentos num pequeno tabuleiro de madeira, o que ele soube fazer.” O Museu Regional de Beja, como se sabe, a funcionar no próprio edifício, desde 1927, guarda no seu acervo os restos desta pintura, porém, actualmente, a fotografia de Abel Viana, como documento, é melhor que o original. A datação da pintura do símio pode remeter-se para o final do século XV ou início do XVI.
É provável que as determinações do Concílio de Trento (1545-1563), ou as razões que levaram à sua realização, tenham exercido alguma influência na mudança do ambiente decorativo da sala capitular. A ser verdade, as pinturas murais de carácter exótico, com representação de símios, vegetação exuberante, e sabe-se lá que mais, relacionadas com a empresa marítima portuguesa, estreitamente ligada à protecção dos duques de Beja e fundadores do convento, teriam sido cobertas pela azulejaria sevilhana nos anos de 1530 ou 1540, como deduziu Baiôa Monteiro, ou, ainda, um pouco mais tarde, se atendermos às decisões da Contra-Reforma. Para Abel Viana (op.cit. p.145), a cobertura azulejar, seria datável de meados do século XVI. Na realidade, este símio caseiro, domesticado, de trela avermelhada afivelada na delgada cintura, parece ter sido, se é que não houve mais como ele, além de outros animais exóticos, um símbolo do homem no seu estado primitivo, portanto uma criação de Deus, aceitável, divertida e, até, sagaz. É natural que as freiras, além de se divertirem com as suas diabruras e imitações (cá estão as palavras que o condenam), tivessem protegido e adoptado este animal e o considerassem uma criatura de Deus, daí a sua representação, sem qualquer outra subtileza de natureza condenável, na sala mais regral do convento [observação que Abel Viana também faz, acrescentando o elevado apreço que para a maioria das pessoas tinha tal curiosidade exótica e o facto de puderem ser, quando em número suficiente, reexportados para a Europa].
Que é estranho ver um símio retratado num lugar sagrado do interior de um convento, é. Que foi consentido, foi. Que a sua ocultação posterior foi de natureza iconoclasta, é provável. Além dos revestimentos azulejares estarem na moda, é verosímil que os seus motivos inócuos, fitomorfos e geométricos, tivessem consumado, de forma oportuna, neste contexto, algumas das regras impostas pela igreja católica.
E, agora, vem a parte menos sisuda e mais criativa: toda gente sabe o que aconteceu ao animal de estimação…e à sua dona. Ambos morreram, provavelmente ele antes dela. Depois, colocaram-lhes por cima, dela, uma campa lisa, em mármore, e, dele, azulejos, dos mais lindos e modernos que então existiam. Apesar do hipotético reencontro tardio, viveram felizes para sempre.

LEONEL BORRELA
[1] Há várias concepções a propósito desta teoria criacionista, conforme é encarada por protestantes (e entre estes também há diferentes conceitos), católicos, cristãos ortodoxos e, também, por outras confissões religiosas. Fundamentalmente todas reconhecem a existência de um Deus ou, até, de várias entidades superiores que tudo criaram, negando maioritariamente as propostas científicas que explicam a formação e evolução do universo e da vida sem intervenção divina.
[2] D. Diogo foi acusado de conspirar contra o rei D. João II, seu cunhado, sendo por este assassinado (acusação descabida, para alguns historiadores que prezam a “justiça” real), em 1484. O próprio assassinato é a prova da relevante actividade em que andava envolvido D. Diogo, mercê dos seus títulos e poder.
[3] MONTEIRO, Florival Baiôa – A azulejaria do convento de Nossa Senhora d Conceição de Beja. Beja: Região de Turismo Planície Dourada, 2001. pp.90 e 190.
[4] VIANA, Abel – “Macaquinho do século XVI”. In Arquivo de Beja , Vol.XIII, 1956. pp. 138, 144 e 145. Cf. também fotografia nº121, entre pp. 136 e 137.

visite http://foradebeja.blogspot.com/http://acultura.no.sapo.pt/page7.html.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O ALTAR PORTÁTIL DO MUSEU REGIONAL DE BEJA - II

O saco de linho bordado a seda
Uma parte reaproveitada de uma peça maior de tecido setecentista, em seda bordada a ouro, serviu para confeccionar um saco protector de um outro, bem mais idoso e relevante, de linho bordado a seda e prata, que envolve o altar portátil decorado. Este, bastante desconjuntado, unido por atilhos, mais os sacos e a caixa de prata, revelam a enorme preocupação que houve pela sua preservação.
Desse último saco não fizemos reprodução, dada a sua modernidade e por não ter tido outro fim, julgamos, senão o de proteger uma autêntica relíquia composta pelo saco/bolsa/cobertura de linho e pela ara embutida na sua caixa. Contudo, apesar de moderno, não deixa de nos apontar o século XVIII como o período mais provável em que, pela última vez, se procedeu ao resguardo do altar, circunstância reforçada pelo aproveitamento da caixa “de toalhas” em prata[1] que referimos na passada semana. O saco de linho, com as dimensões aproximadas de 38x29cm, alberga a caixa de altar, em pinho, com 31x24,5x 2,6cm, medindo a pedra de ara, negra, 23x15,5x1,5cm.
Podemos considerar que as duas peças, saco e altar, se valorizam mutuamente, guardando em si próprias o mesmo objectivo religioso, o de preservar Deus em Cristo. A face principal do saco de linho, apesar das limitações artísticas e de pormenor que o bordado apresenta, sugere a decoração e o texto medieval dos códices. Não havia mais cores para a paleta de fios de seda e prata, tal a sua profusão. No centro, o monograma ihs (que significa somente Jesus ou, então, Jesus Salvador dos Homens, como pretendem outros estudiosos)[2] em letras góticas, configurando, aproximadamente, um brasão com seu paquife vegetalista, trémulo e exuberante, enxameia o pouco espaço livre de folhas outonais e botões floridos em prata, como se de um milagre se tratasse – na morte, a vida; na orla um texto latino, também bordado em letras góticas, perfeitíssimas, coloridas alternadamente de azul, amarelo, vermelho e lilás ou tom rosa: “DOMINUS MEUS JESUS AUTEM TRANSIENS PER MEDIUM ILLORUM IBAT”, isto é, “O meu senhor Jesus, passando por meio deles, seguiu o seu caminho”[3]. Trata-se do texto 30, do capítulo 4 de São Lucas que, dos versículos 14 ao 30, narra, no ministério de Jesus na Galileia, a atitude ambígua dos Nazarenos que depois de O admirarem tanto O quiseram lançar do alto da colina da cidade, mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho. Afinal, Jesus, dissera a verdade: “nenhum profeta é bem recebido na sua terra” - nem Ele, naquele momento, nem no passado o tinham sido Elias e Eliseu. A história repetia-se e os Nazarenos não queriam admitir a verdade[4].
No reverso do saco, uma simples e recatada decoração estilizada é de significado mais enigmático: quatro lagartos posicionados nos cantos, cada um com cerca de 3,5cm de comprimento - dois bordados a vermelho e dois a amarelo, com aplicações pontuais de prata e de outras cores - simbolizam a alma que procura, em êxtase, a sua Luz. Na cultura mediterrânica é usual ilustrarem o tema da renovação, regeneração e ressurreição[5]. Uma pequena cruz ao centro, de braços articulados, sugere o martírio de Cristo. Na capela de Cristo crucificado, da Sala do Capitulo do convento da Conceição, podemos observar na base da cruz o lagarto, diligente, a afastar as cobras[6].
O saco de linho apresenta lacunas no bordado de algumas letras da orla, além de um pequeno rasgão que em nada afecta a sua leitura total.

O Altar portátil
A caixa do altar portátil é outra maravilha de arte. Como alma, duas tábuas sobrepostas de madeira de pinho, uma delas aberta para encaixar a pedra de altar, uma ara negra que possui no reverso a cavidade para a colocação da(s) relíquia(s) do(s) santo(s), portanto foi mesmo utilizada na celebração eucarística. Recebeu nos lados menores, à maneira de moldura, aplicações de marfim e tartaruga (?), enquanto na face superior, uma superfície preparada com tela muito fina e cola serviu para justapor, à maneira de um mosaico, os diminutos elementos geométricos paralelipipédicos compostos de estanho (?), madeira, tartaruga (?), marfim e malaquita (?) verde. É um trabalho bastante original, de cariz geométrico/abstracto, para o qual não encontrámos semelhança noutras peças artísticas. Apenas de imediato nos lembrámos das composições geométricas bizantinas, dos séculos IX e X, influência compositiva que naturalmente evoluiu nos séculos seguintes através das obras iluminadas. Desconhecemos a sua origem, constituindo a pedra de ara, negra, e o lagarto, elementos essencial na relação com as culturas orientais desde a antiguidade, da religião mitraica a outras, tendo sido esta a principal razão por que não publicámos este estudo há muito mais tempo.
O nosso amigo Dr. José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, alertou-nos, após uma breve conversa telefónica, para a produção italiana de marchetaria, na região da Toscânia, durante o período do renascimento, na qual talvez se pudesse encontrar a filiação técnico/artística deste altar portátil. Túlio Espanca conhecia a peça, pois mostrámos-lhe fotografias e desenhos, mas nunca dialogámos sobre ela. Sinal da sua probidade é o facto de, podendo fazê-lo, não a ter integrado no seu trabalho sobre o Inventário Artístico do Distrito de Beja (1992), pois quis que fossemos nós a publicá-la em primeira-mão.
Os lagartos bordados no saco de linho, vestidos de amarelo e de vermelho, com o dorso brilhando de prata, não são também fruídos no oriente, nomeadamente em Benares, na Índia, um dos maiores centros religiosos do mundo, onde se venera o ídolo de pedra negra Krishna?[7] Se encomendássemos este altar no oriente, a um artesão indiano, paquistanês, ou a outro qualquer dessa imensa região, cuja influência artística se estendeu até ao mediterrâneo oriental, explicando o que se pretendia com ele, não seria natural que lhe destinassem uma pedra negra, para eles de muito maior significado? Sabe-se que ao longo do contacto entre os povos e da história das religiões, e a católica não foi excepção na sua relação com as outras, houve que admitir e tolerar determinados aspectos menos lesivos de sincretismo religioso. Era também um método subtil para cair nas boas graças de quem não professava ou duvidava da missão católica. Por um lado identificava-se com um trabalho que era seu ou dos seus, e, por outro, com uma das bases fundamentais da sua fé em que a pedra negra era indispensável. As relíquias dos santos consagravam à celebração cristã, através do contacto, o que fora pagão, fosse um lugar, uma pedra ou um templo.
Dado que a pedra negra apresenta na superfície sinais de desgaste, riscos até, concluímos, sem a certeza absoluta, que a rocha nela utilizada deve ser ardósia. Contudo, recomendam-se (ou recomendavam-se), para as pedras de altar, rochas duras. Inicialmente chegámos a pensar que se tratava de um pequeno quadro de ardósia para escrever[8], embora o considerássemos requintado demais para o efeito, mas sendo tão antigo… porque não? Mas, ao virá-la, a existência da cavidade para as relíquias dos santos “informou-nos” que a leitura era outra: a de um altar portátil. O desgaste da pedra poderá significar um uso muito frequente e, hipoteticamente, um longo tempo de utilização. E se a própria pedra de ara fosse, em termos de uso, mais antiga do que a bonita caixa que a resguarda?
Esperamos que estas primeiras considerações sobre o altar portátil do Museu Regional de Beja sejam vistas como isso mesmo, uma primeira e ainda incompleta abordagem ao tema, porque nos parece que o que se sabe destas peças é relativamente pouco, daí as conjecturas puderem mostrar-se desmesuradas. Julgamos que o altar portátil é um exemplar museológico de grande raridade e significado, talvez da primeira metade do século XVI[9]. Uma análise dos materiais é urgente, assim como o seu restauro, estudo e exposição pública, acontecimento que este exemplar nunca viu. É lamentável que os nossos empresários locais não exerçam, com o reconhecimento e as regalias fiscais que a lei lhes confere, o mecenato no restauro destas obras de arte. Se actuassem na defesa de algum deste património móvel não só contribuiriam para a elevação cultural da sua terra, como de si próprios e do seu país.
Um muito obrigado ao Museu Regional de Beja pelas facilidades concedidas nesta investigação preliminar.

[1] Será esta a caixa de madeira forrada a prata, avaliada em 24000 réis, no final do século XIX, que vem mencionada com o nº351 como fazendo parte do rol de peças do convento da Conceição, entregues à Mitra, destinadas algumas a serem escolhidas e levadas para Lisboa pelos Próprios Nacionais, segundo uma descrição vinda a lume a p.284, Vol.I, do Arquivo de Beja?
[2] Em 1432, o Papa Eugénio IV emitiu uma bula autorizando a devoção ao símbolo escrito IHS.
[3] Embora o tenhamos feito na altura certa, queremos voltar a agradecer, ainda que postumamente, a Túlio Espanca a disponibilidade que sempre nos manifestou e a verdadeira amizade e respeito que nos dedicou. Em Outubro de 1986, escrevia-nos uma carta dando-nos conta da tradução da legenda latina que aqui utilizamos. Os seus amigos padres, Dr. Júlio César Baptista e Henrique Louro, ambos excelentes latinistas e paleógrafos, foram os autores da tradução e do esclarecimento sobre a sua localização no Novo Testamento. Bem hajam, todos, onde quer que se encontrem.
[4] E, hoje, caros leitores, não se passa o mesmo, ainda que noutros moldes? (Apud Frei Lopes Morgado da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, em Portugal. WWW.capuchinhos.org/porciuncula/encontro_biblia/domingos_dezembro_janeiro_2007.htm - 21 dez 2006.)
[5] Há pouco mais de dez anos vimos um programa televisivo, espanhol, sobre os templos cristãos da Capadócia, na Turquia, no qual se mostravam e referenciavam os lagartos como únicas figuras permitidas entre a decoração geométrica, durante o período iconoclasta, sécs. VIII –IX.
[6] Recordo a minha falecida mãe que, aos meus gritos de criança e de adolescente, “cobra, cobra!”, a maioria das vezes por brincadeira, só para ouvi-la, dizia logo, como que atemorizada: Lagarto, lagarto!, e assim esconjurava o mal.
[7] HANI, Jean – “O simbolismo do templo cristão”. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 114.
[8] Um quadro de ardósia no mesmo género daqueles que nós utilizámos em criança, há mais de 40 anos, dentro e fora da escola primária, para aprendermos as lições, repetirmos vezes sem conta as letras, números, palavras e contas, etc., que se apagavam com a mão, pano ou esponja, húmidos ou não, conforme se alternava a escrita com giz ou lápis de ardósia. Outros tempos… de poupança e - sem miserabilismos, nem saudosismos - de respeito pelo contingente rendimento do trabalho dos nossos pais.
[9] Um incógnito, cavaleiro da Índia, doou de esmola ao convento da Conceição de Beja, a quantia de 500.000 réis para comprar fazenda, em 12 de Abril de 1560 (Op. cit. SARAMAGO, 2005, 158). Quem doou tanto dinheiro, vindo de onde veio, também poderia ter oferecido ao convento o altar portátil, se é que o possuía na sua longa viajem. Mas, cuidado, estamos a pensar que ele veio do Oriente, e se não veio? Seja como for prevalece, contudo, o excepcional valor intrínseco da peça museológica.
Cf. BORRELA, Leonel -"Iconografia Pacense - O altar portátil do Museu Regional de Beja - II", in Diário do Alentejo de 19 de Janeiro de 2007.

O ALTAR PORTÁTIL DO MUSEU REGIONAL DE BEJA - I

O exemplar museológico que a partir de hoje divulgamos é inédito. Não lhe conhecemos quaisquer referências bibliográficas, nem sequer fontes históricas que a ele se refiram. Dos porquês da sua origem e percurso, aparentemente, nada se sabe, até incorporar o acervo do Museu Regional de Beja. Porém, até esta incorporação foi acidental. Quando, em Março de 1984, decorria o inventário, para o IPPAR, da colecção de ourivesaria – essencialmente constituída por arte sacra em prata e prata dourada – chamámos a atenção para o facto daquilo que iria ser inventariado como uma simples almofada de seda bordada a ouro, existente numa caixa de prata dita de toalhas[1], puder ser qualquer outra coisa bem diferente. De peso exagerado para o seu pequeno volume e função, encontrámos então, no interior da dita almofada, um pequeno saco de linho bordado a seda e a laminado de prata[2] protegendo um altar portátil de concepção singular. A caixa de prata que resguarda esta relíquia sagrada e artística encontra-se exposta actualmente numa das vitrinas do Museu, situada no interior da pseudo-mesa de altar, do altar de S. Bento, no lado da Epístola, da igreja conventual da Conceição.
O Alentejo e o Algarve foram, nos primeiros tempos da monarquia portuguesa, terra de Missão. Ainda hoje há quem afirme, não sem alguma razão, que essa Missão não acabou, havendo sim que humanizar e moralizar os seus processos. Onde não havia capelas, espaços próprios destinados ao ofício divino, havia o altar portátil que permitia, concedida a necessária autorização episcopal ou papal, a comunhão eucarística em qualquer lugar, no campo, no mar e nos territórios de além mar, em África, Ásia e América. Os enfermos acamados também usufruíam, nas suas casas, das graças veículadas pelo altar portátil. Desejamos, se os dados fornecidos nesta primeira análise do altar portátil de Beja o permitirem, levar tão longe no tempo quanto possível a sua feitura. Talvez o final do século XV ou o início do XVI constituam um parâmetro cronológico aceitável, mas devemos desde já alertar que, pelo menos estilisticamente, a caixa de prata é bem posterior ao altar portátil, ficando por saber se teria sido feita para proteger o que já se considerava de grande estima, não só pela função que tinha - e, provavelmente, por também ter pertencido a alguém muito especial – ou se teria sido reaproveitada para tal fim, hipótese que nos parece mais correcta. É certo que a análise material, laboratorial, de alguns objectos fornece dados cronológicos e provas de autenticidade (ou não) indesmentíveis, mas quase nunca é suficiente quando se trata de distinguir, por exemplo, a maior antiguidade e o jogo de influências estilísticas (e também politicas, sociais, económicas, religiosas, em suma: culturais) entre peças de certa proximidade histórica. Não nos admiraria absolutamente nada que um altar portátil desta natureza tivesse acompanhado, no período áureo dos descobrimentos marítimos portugueses, alguma figura importante da cidade de Beja, ou, então, que tivesse pertencido aos duques de Beja ou ao próprio convento. Mas, a pedra negra…
No Museu de Marinha, em Lisboa, não se encontra exposto um altar portátil que se afirma ter pertencido ou ter sido levado por Vasco da Gama na sua nau S. Gabriel? Sem conjecturas não se encontram soluções.

A caixa de prata
A caixa de madeira tem duas meias portas correndo em guilhotina e é revestida de folhas de prata e aplicação ornamental, também de prata, nas esquinas menores e arestas, conforme se mostra no esboço desenhado. O fundo, totalmente revestido a couro, possui duas réguas, posicionadas paralelamente no sentido da largura menor, a servirem de pés. A decoração estilizada de pendor naturalista, fitomorfa e simbólica, alude a S. João Evangelista - em cada um dos centros das faces menores, uma águia coroada e afrontada, com a cabeça de lado, suporta no bico um tinteiro; enquanto nas duas meias portas duas águias semelhantes às anteriores alternam a posição com duas palmetas. Na justaposição das meias portas forma-se o desenho, também cinzelado, de uma Custódia, ostentando: na base, um serafim; no cimo da haste, antes do templete, outra águia “evangelista”; e o templete de duas colunas e aletas adjacentes, cupulado e rematado por enorme cruz, expõe o Corpo de Deus, a Hóstia, assente numa meia-lua. Esta iconografia tem paralelo noutras representações dos estilos maneirista e do início do barroco, em Beja, nomeadamente no altar de S. João Evangelista no claustro do convento da Conceição. Por outro lado, as cintas recortadas por meios-círculos, aplicadas na maioria das arestas da caixa, servindo-lhe de moldura, foram decoradas com traços curtos de cinzel e pequenas cavidades obtidas por punção circular, um pouco à semelhança da solução fitomorfa utilizada no altar portátil do mosteiro do Lorvão, datado de 1514[3]. Não confundimos uma peça com a outra, nem a função é a mesma, contudo, as influências da técnica e do estilo aparentemente perduram.
A caixa “de toalhas” do Museu Regional de Beja não tem qualquer marca de ourives. Revela um trabalho estilizado, planimétrico, sem as aplicações repuxadas e volumétricas tão em voga na ourivesaria barroca. O delineado das águias e da custódia, remete o trabalho, em termos estilísticos e cronológicos, para o início do barroco, século XVII, enquanto a decoração fitomorfa da folhagem recortada das arestas, como vimos, obedece a um programa e tempo anteriores. Desconhecemos se a caixa pertencia ao convento da Conceição de Beja, mas tal afinidade não seria de todo incoerente, dada a profusão da simbologia do Evangelista mais querido das religiosas. A capela de 1601, no claustro, dedicada a S. João Evangelista, marca provavelmente o acentuar da rivalidade existente entre as religiosas “Baptistas” e “Evangelistas”, daí a profusão de águias e cordeiros[4].
As dimensões exteriores da caixa de prata são: 37,1x27,7x9,4cm; o interior, forrado a cetim (?) vermelho, tem 35x25,5x6cm e as meias portas têm cerca de 25,7x18,1cm cada. Data provável: início do século XVII.

[1] Com a referência actual de inventário OUR 99, fez parte do rol de objectos do Museu Regional inventariados para efeitos de seguro, em 1949, com o Nº31 e a seguinte descrição: “Uma caixa de madeira forrada de prata cinzelada, tendo dentro uma almofada de seda e ouro -500$00”. A mesma caixa tem ainda, colocadas no fundo externo, duas tarjetas: uma azul com a palavra Sé manuscrita e o Nº 99 e outra, vermelha, com o Nº58. Uma chapa circular de alumínio com a designação de Museu Regional de Beja ostenta também outro número, o 63. Estes dados são importantes porque podem vir a contribuir para um melhor conhecimento da história deste espécime.
[2] Como não tivemos oportunidade, ao longo dos anos, de consultar especialistas nestes materiais, é natural que a nossa pouca experiência possa vir a saldar-se num ou noutro erro de identificação ou classificação. Todavia, essa contrariedade, não obsta a que divulguemos ao mundo da história de arte e às comunidades científica e teológica, uma peça da liturgia cristã que reputamos de bastante rara.
[3] GONÇALVES, A. Nogueira – “O tesouro de D. Catarina de Eça”. In mundo da arte. Coimbra: Epartur, 1982. Nº 12, pp. 3-10; Cf. do mesmo autor – “Estudos de Ourivesaria”.Porto: Paisagem Editora, 1984. pp. 117-119 e 121-124 e, ainda, as pp. 46 e 47 do “Inventário de ourivesaria portuguesa dos sécs. XVI e XVII” do Museu N. Machado de Castro, 1992. Este altar portátil, com sua pedra de ara de pórfiro verde-escuro mosqueado, pertence ao acervo do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra
[4] O Museu Regional de Beja possui uma outra caixa, também de madeira, mas mais pequena, revestida a prata repuxada, dedicada a S. João Baptista e Sta. Custódia, mandada fazer, no século XVIII, pela madre Soror Catarina de São Brás. Esta religiosa parece não ter pertencido ao convento da Conceição. Cf. SARAMAGO, Alfredo – “Fé e Grandeza a boa vida de uma casa monástica – para uma história do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005. pp.137-140.


Cf. BORRELA, Leonel - "Iconografia Pacense - Oaltar portátil do Museu Regional de Beja - I", in Diário do Alentejo de 12 de Janeiro de 2007.