ICONOGRAFIA PACENSE
O misterioso fecho de abóbada do “Hospital Velho”
No período medieval cristão a arte
atravessou diferentes expressões plásticas e foi utilizada de modo diverso, consoante
a finalidade. Num tempo em que muito poucos sabiam ler, a linguagem da arte,
especialmente da escultura e da pintura, era compreendida por todos. […]Porque
somos herdeiros da mentalidade científica que nos últimos trezentos anos
descurou paulatinamente o significado da simbólica cristã inerente às obras dos
períodos românico e gótico, não viria mal ao mundo se continuássemos a ignorar,
por uma questão de comodidade ou de total desinteresse, o misterioso fecho de
abóbada da antiga enfermaria do Hospital Grande de Nossa Senhora da Piedade,
fundado por D. Manuel, ainda enquanto duque de Beja, no ano de 1490, cronologia
que, segundo a tradição e alguns pormenores construtivos aparentemente mais
antigos, pode recuar a 1469, ao primeiro ducado de seu pai, o infante D. Fernando.
[…] O Homem debate-se desde a sua
génese entre o bem e o mal, criando ao longo da sua evolução meios que lhe
facultam bem-estar e segurança, mesmo em situações de extrema gravidade. Num
tempo em que as doenças não se curavam como hoje, nem sequer as mais simples, e
em que os casos psíquicos eram rotulados de possessões demoníacas, a cura
maioritariamente aceite e praticada com fé, envolvia a purificação física,
mediante água benta, e espiritual, invocando pelas orações a intervenção
divina. Cremos que esta leitura é fundamental para desvendar o significado do
fecho de abóbada figurativo, situado no 4º tramo da nave adossada à muralha na
enfermaria gótica do “Hospital Velho”, designação por que é mais conhecido no
aro de Beja. […] Ora, o fecho de mármore acinzentado, de Trigaches/São Brissos,
material de que são feitas quase todas as obras de cantaria da cidade, com um
diâmetro máximo de 30cm, exibe em baixo-relevo duas figuras frontais com seus
atributos. Do lado esquerdo, pequena e mais avançada, vê-se uma criança
praticamente nua, com a cabeça algo transfigurada nos traços essenciais, pernas
pequenas, movimentadas (estrebuchando? e também com um certo ar de feto ou de
recém-nascida), acorrentada pelo pescoço e presa a uma “estaca que, um homem
barbado, à direita, bem maior e mais recuado, segura com firmeza, ostentando na
mão direita, atrás da cabeça da criança, o que parece ser o cabo de uma arma
branca, cuja lâmina quase não se vê. Um gancho de ferro, colocado
posteriormente no centro, afectando a leitura da dita lâmina proporcionaria uma
melhor visibilidade do fecho e iluminação deste tramo da enfermaria. Alguns dos
outros fechos do hospital têm decoração geométrica, vegetalista e heráldica,
mas também os há, sacralizando as diferentes áreas do edifício, com o
simbolismo da cruz, seja crucifixo com pedestal ou a simples cruz da ordem de
Cristo, além de um vaso com a dupla simbologia de uma árvore cujos ramos e
folhas caem como se fossem, um chorão, uma palmeira ou a água em repuxo da
fonte, portanto utilizado como fonte da vida e árvore da vida, motivos
recorrentes noutros monumentos de Beja. Para finalizar este rol de fechos, sem
os esgotar, pois merecem melhor inventário, destacamos mais um com cinco
pombas, no género do da abobada estrelada, oitavada, da sala regral da entrada
do antigo convento de São Francisco (actual pousada) e um outro presumivelmente
com a imagem da lua cheia, como símbolo da noite, do silêncio e do recato que a
instituição hospitalar exigia. Ainda tentámos procurar, sem sucesso, noutros
edifícios portugueses e até estrangeiros, um fecho figurativo semelhante ao de
Beja, pois não acreditamos que seja único, embora seja bastante invulgar.
Já vimos a representação do
mistério, portanto, já só falta conhecer o que julgamos ser o seu significado.
Quando colocamos um crucifixo na nossa casa, estamos a repetir, porque temos fé
em Deus, um gesto ancestral ligado à protecção do lar, da família, ao
afastamento do mal, da doença; se um crucifixo não é suficiente, ainda nos
valemos de um elenco de santos para as ocasiões mais propícias. Evocamo-los
para nosso auxílio e se os representarmos, parecem mais intensos e eficazes, o
benefício melhora. É esta a diferença substancial entre o fecho do “milagre de
São Bartolomeu”, assim o qualificamos, e todos os outros. O santo, apóstolo de
Cristo, aparece-nos no acto de aprisionar o demónio, causa de todos os males. A
figuração da criança estará relacionada com a roupagem de inocência de que se
reveste o mal para nos enganar, manigância que não resulta com São Bartolomeu,
exorcista muito venerado na região de Lamego, onde não conhecemos uma
representação igual. Uma vez por ano, no dia 24 de Agosto, o santo solta o
diabo por uma hora, não só para descarregar tensões como para recordar aos
fiéis tresmalhados os cuidados que devem ter. O santo teria viajado até à
Índia, mas foi na Arménia que viu o seu fim, depois de esfolado vivo (daqui a
arma branca como símbolo do seu martírio) e decapitado, próximo do mar Cáspio,
no século I. Antes expulsara o diabo do corpo de uma filha do rei Polímio,
acorrentando de seguida o demónio.
A crença de exorcista e o seu dia de
celebração, quando “o diabo anda á solta”, leva milhares de pessoas a São
Bartolomeu do Mar, em Esposende, com o intuito de evitar a gaguez, epilepsia,
mau olhado e outras maleitas das crianças. Camilo Castelo Branco, nas “Noites
de Lamego” (1908, 165), refere as “dezenas de criaturas obsessas”,
principalmente mulheres possuídas pelo diabo, cujos familiares procuravam na
aldeia de Caves, a cura para os seus males, com a intervenção de uma grande
imagem de pedra do santo. Voltando ao fecho da antiga enfermaria de Beja,
meditamos no modo como a arte tinha o poder de interceder na cura das pessoas e
como ainda hoje sentimos a importância desse tempo a dizer-nos que a arte não é
só obra estética, nem tão pouco tem que ser bela, nem agradável…
Leonel Borrela
In Diário do Alentejo de 17 fev 2012